Rosângela Trajano

Nasce uma estrela sempre que se escreve uma poesia

Textos


Era uma vez uma menina de olhos bem grandes e da cor da noite, com barroquinhas nas bochechas e um sinal parecido com um gato no bumbum, coisa que ela achava muito engraçada e ficava olhando no espelho.

A menina tinha uma vovó meio bobona, quer dizer, a vovó confiava em todo o mundo, por isso era perigoso andar sozinha pelas ruas daquela cidade grande onde tinham muitos ladrões e aproveitadores de idosos. A mamãe sempre pedia para a menina acompanhar a vovó a todos os lugares que ela ia e ficar de olho bem aberto para quem chegasse perto delas, uma devia cuidar da outra.

Passavam o dia inteiro brincando, vovó e menina. A vovó adorava costurar bonecas de pano para a menina que tinha uma coleção de várias cores: amarelas, vermelhas, azuis, verdes, brancas e muitas, mas muitas mesmo da cor preta. Ela amava muito mais as bonecas da cor preta porque eram as que mais resistiam a este mundo desigual no qual vivemos. Sim, o mundo não oferece as mesmas oportunidades para todas as pessoas. Algumas têm muitas coisas e outras não têm nada, sequer onde morar, sequer o que comer, sequer quem amar. E isso é muito triste, pensava a menina.

Certo dia, a vovó se arrumou toda para ir ao banco. Sempre que ia para algum lugar a vovó costumava colocar batom, pó, colônia, talco, vestido e sapatos novos. Depois colocava um chapéu na cabeça para não levar sol e uns óculos grandes no rosto para se proteger da radiação solar, dizia. A menina também disse que ia com ela

- Ah, então vá se aprontar! Desse jeito não pode ir comigo!

- De que jeito, vovó?, olhou-se a menina.

- Toda suada e descabelada desse jeito! Vá tomar um banho e vestir uma roupa bonita. E passe perfume.

Bem que a menina quis sorrir com a vovó toda audaciosa e cuidadosa para com ela. Pois bem, não titubeou. Tomou banho e vestiu um vestido azul com patinhos estampados. Depois de pronta chegou para a vovó toda contente e perguntou assim

- E agora? Como estou, vovó?

- Huuummm.... falta só pentear os cabelos! Coloque um laço de fita neles.

Depois de prontas, a menina e a vovó saíram pelas ruas da cidade caminhando sempre pelas calçadas e só atravessando ruas nas faixas de pedestres. A menina tinha muito cuidado com a sua vovó. Segurava na sua mão com força. A vovó usava uma bengala para se equilibrar. Algumas ruas não tinham calçadas porque estavam cheias de camelôs ou construções irregulares e elas tinham que disputar lugares com os carros e as pessoas que iam e vinham. Era muita gente o tempo todo perto do banco onde a vovó recebia o salário da sua aposentadoria.

A vovó se aposentou depois de trinta e cinco anos de trabalho. Ela era professora de criancinhas. Foi a melhor professora da sua escola, assim dizia para todo o mundo que conhecia e até mesmo para a menina que achava a vovó uma mulher maravilhosa no alto dos seus oitenta e sete anos de idade. Sabia de tudo um pouco. Fazia muitas coisas ao mesmo tempo. E estava sempre com pressa para viver. A menina achava aquilo tão bonito na vovó! A pressa para viver e ser feliz que ela tinha, porque tem gente que não tem pressa para nada. Fica de pernas pro ar à espera que aconteça alguma coisa para ser feliz. Não, a gente é que faz a felicidade com os nossos gestos, palavras e atitudes. É a gente que constrói o nosso destino. O amanhã não pertence somente a Deus, mas a nós. Se não fizermos nada para que ele seja grandioso, Deus não será o culpado, dizia a vovó para a menina nas suas conversas antes de dormirem.

As duas chegaram ao banco e assim que colocaram os pés na calçada do prédio, uma moça vestida de preto, toda sorridente e com uma prancheta nas mãos com folhas e caneta aproximou-se das duas com bastante simpatia

- Bom dia, vovó! Vamos fazer um empréstimo consignado hoje?

- O que é isso, minha filha?

- O consignado é um empréstimo para aposentados do INSS que é descontado direto do seu salário, vovó. A senhora paga uma taxa bem pequena e pode pagar parcelado em mais de 70 meses. Vamos fazer?

- Não, vovó! Não faça! A senhora não precisa de empréstimo!, disse a menina baixinho puxando a vovó para ouvi-la.

- Não se meta em assuntos de adultos, menina! Seja educada!, falou a jovem olhando, aborrecida, para a menina.

- Eu não vou querer não, minha filha! Obrigada!

- Vamos fazer, vovó. A senhora anda muito a pé?

- Ando, sim. Eu e a minha netinha. Esta menina linda que você acabou de brigar com ela.

- Então, vovó, faça um empréstimo para comprar uma moto pra senhora sair por aí se aventurando nas estradas. Já pensou em ser uma motoqueira?

- Pra comprar uma moto talvez não, mas quem sabe eu possa fazer um empréstimo para comprar uma bicicleta para a minha netinha? O que acham?

- Eu acho uma excelente ideia, vovó. Diga-me quanto a senhora recebe para eu fazer o cálculo da sua margem de empréstimo.

- Não, vovó! Eu não preciso de bicicleta! Vamos embora daqui!

- Fique quieta, menina! Não se meta na nossa conversa!  A sua vovó vai lhe dar um presente e você ainda está achando ruim?

- Você está querendo empurrar um serviço para a minha vovó que ela não está precisando.

- Vovó, eu vi aqui que a senhora tem disponível para empréstimo 25.000,00. Dá pra fazer muita coisa com esse dinheiro!

- Nossa! Tudo isso? Mas eu só preciso de 800,00 para comprar uma bicicleta nova para a minha netinha.

- A senhora compra outras coisas com o dinheiro que sobrar. Vamos fazer vovó. É um bom negócio. Os juros são os mais baixos do mercado. A senhora não vai nem sentir que está pagando. As parcelas ficam bem baixinhas. Coisa de 184,00 mensais. Vale a pena, vovó!

- Vale a pena não, vovó! A senhora vai comprometer o seu salário! Vamos embora daqui!, dizia a menina puxando a vovó pelo braço.

- Ei, pare com isso! Deixe a sua vovó conversar comigo em paz, menina chata! E ainda tem mais, vovó, quando a senhora pagar uma parte pode renovar o empréstimo e receber mais dinheiro. Sempre renovando a senhora nunca vai ficar sem dinheiro com parcelas que cabem no seu bolso. O empréstimo consignado do INSS tem as menores taxas do mercado, vovó. Todo aposentado está fazendo! Só falta a senhora!

- Eu vou pensar um pouco. Não sei direito se faço ou não. Parece-me um bom negócio.

- Não, vovó. Não é não. Sei de idosos que estão superendividados com esse tipo de empréstimo. Estão com mais de 30% dos seus salários comprometidos. Eu não quero vê-la endividada. Vamos embora para casa, vovó. Outro dia a gente vem receber o seu salário.

- Deixe de ser chata, menina abusada! Deixe a sua vó fazer o negócio dela comigo! Vá procurar o que fazer!, falou a mulher dando um beliscão no braço da menina.

Com o beliscão, a menina começou a chorar e a vovó ficou toda preocupada. Quis saber o que tinha acontecido e a menina contou-lhe tudo mostrando o braço vermelho do beliscão da moça. A vovó não contou conversa partiu pra cima dela com a sua bengala

- Sua nojenta! Tome isso pra você não beliscar mais nenhuma criança! Tome! Tome, a vovó bateu na mulher com a sua bengala até ela sair correndo para bem longe.

Depois do acontecido, a menina sentindo-se protegida, com a mulher distante, entrou no banco com a vovó e ajudou-a a sacar o seu salário. A vovó colocou o dinheiro dentro dos sapatos e saiu de mãos dadas com a menina de volta para casa

- Obrigada por me livrar daquela mulher, minha querida!

- Vovó, nunca faça empréstimo consignado!

- Por quê?

- Porque é uma faca de dois gumes, vovó. O dinheiro que a senhora recebe pode lhe ajudar hoje, mas a senhora vai passar anos e anos pagando. Além do mais, a senhora não está precisando comprar nada.

- Eu prometi lhe dar uma bicicleta de presente no seu aniversário e já se passaram quatro meses e não pude comprar, querida.

- Depois a senhora compra, mas nunca faça empréstimo consignado. A gente deve aprender a viver com o que temos. Se a senhora só recebe um salário-mínimo, gaste apenas o que pode. E assim para quem recebe um, dois, três ou quatro salários. Todo idoso devia ter cuidado com o seu salário. Tem idoso que quer comprar coisas para a casa, agradar um filho ou netinho e acaba se endividando com esse tal empréstimo consignado. É um perigo, vovó, esse empréstimo!

- E quando a gente deve fazê-lo, minha querida?

- Quando for extremamente necessário. No caso de doença, morte ou muita necessidade, vovó. O que não é o seu caso, não é mesmo?

- Não! Todo mundo precisa de dinheiro, mas para ficar endividada eu não quero. Também nunca fiz empréstimos. Melhor a gente esquecer esse tal de empréstimo consignado. Você me deu uma lição muito boa sobre ele e merece tomar um sorvete bem gostoso por isso!

- Então vamos à sorveteria, vovó?

- Vamos, sim! Vamos tomar muito sorvete!

A menina e a vovó saíram de mãos dadas andando pelas ruas novamente. Elas olhavam as placas das lojas, os outdoors e esperavam os semáforos fecharem para atravessar as ruas. A menina tinha muito cuidado para com a vovó e vice-versa. O dia estava quente e tomar um sorvete cairia bem, afinal a menina e a sua vovó não tinham nada de importante em casa para fazerem. Eram férias escolares! Era verão! Vovó estava tão suada que a menina passou seu lenço no rosto dela e depois a beijou, com carinho.

 

Rosângela Trajano
Enviado por Rosângela Trajano em 18/01/2023
Alterado em 18/01/2023
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